Por Natalia Pasternak 12/12/2020 • 04:30
Esta semana o presidente da República anunciou que estamos chegando ao “finalzinho” da pandemia. Abstraindo-se o fato de que o presidente dá a impressão de habitar uma realidade paralela onde correm rios de cloroquina e a Covid-19 é só uma gripezinha, muita gente parece ter ideias parecidas, e por isso vem relaxando as medidas de proteção.
Este relaxamento se reflete em um grande aumento no número de casos, hospitalizações e mortes, em geral não de quem relaxou as medidas e foi a festas, bares e restaurantes, mas dos outros. Outros que às vezes nem conhecemos. E isso é o que faz com que a doença pareça invisível para tanta gente. Infelizmente, muitos só percebem a gravidade da situação quando perde alguém próximo. Hidroxicloroquina, desaconselhada pela OMS no tratamento da Covid-19 | AFP
Houve a festa de casamento no Maine (EUA), para pouco mais de 60 pessoas, que levou a 177 infecções e à morte de sete pessoas que não estavam entre os convidados. Se não tivesse sido feito o rastreamento dos casos, será que os noivos saberiam que seu “dia mais feliz” havia custado sete vidas?
No Brasil, a ficha parece que começou a cair. Em nota, a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, ao perder um de seus membros, acusou o governo de homicídio.
A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), por sua vez, publicou diretrizes extremamente claras sobre diagnóstico, prevenção e tratamento da Covid-19, suprindo a lacuna deixada pelo Ministério da Saúde, que insiste no mito quase religioso do “tratamento precoce”, espécie de ritual de batismo que ocorre no rio de cloroquina que jorra do do Palácio do Planalto. O tratamento recomendado pelo governo não tem respaldo científico, e sugere exatamente o oposto do recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC).
A SBI aponta os erros do governo, e por isso, foi oficiada pelo Ministério Público Federal de Goiás para “prestar explicações”, e apresentar os argumentos científicos para embasar o uso de antitérmicos consagrados no combate à febre para combater febre, e o não uso de medicamentos descartados em testes científicos para Covid19 no tratamento de pacientes de Covid19. É assim na realidade paralela: procuradores da República acionam cientistas, desconfiadíssimos por eles terem dito que a Terra é redonda e que porcos não voam.
Não é, vamos ressaltar, a primeira vez que o MPF persegue cientistas que divulgam resultados inconvenientes para a narrativa bolsonarista a respeito da pandemia. O professor Marcus Lacerda (Fiocruz-Amazônia) e todos os coautores de um artigo científico publicado em excelente revista internacional foram acionados por não encontrar benefícios da cloroquina no combate à Covid-19.
Numa das passagens mais memoráveis de “1984”, George Orwell escreve que “liberdade é a liberdade de dizer que 2+2=4. Tendo isso, todo o resto decorre daí”. É revigorante que as sociedades médicas e científicas brasileiras finalmente se lembraram de ser livres.
Natalia Pasternak é microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência, pesquisadora do ICB-USP e autora do livro “Ciência no Cotidiano”