Conheça a história de Sepé Tiaraju, o índio que pode virar santo
Nos locais em que ele e seus seguidores foram assassinados, no que foi considerado o maior massacre do RS, na região de São Gabriel, as homenagens ao herói indígena são discretas
07/02/2020 – 15h41minAtualizada em 07/02/2020 – 15h42minCOMPARTILHE:
ITAMAR MELO
O cavalo rodopiou em um buraco de tatu e arremessou Sepé ao solo. Com a lança, um soldado português trespassou-lhe o corpo. Veio o governador de Montevidéu, o espanhol José Joaquim Viana, e deu início à tortura, queimando com pólvora a carne do líder indígena. Depois disparou um balaço de pistola e mandou que decepassem a cabeça.
O martírio de Sepé Tiaraju aconteceu em uma noite enluarada, à beira de um córrego, tímido afluente do Vacacaí. Nesta sexta-feira (7), completou 264 anos.
Foi uma espécie de prólogo. Três dias depois, em 10 de fevereiro de 1756, a 30 quilômetros de distância, os exércitos coligados de Portugal e Espanha fizeram o enfrentamento decisivo com as forças indígenas. Chacinaram 1,5 mil guaranis em menos de duas horas, empapando o pampa de sangue.
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A Sanga da Bica, onde Sepé morreu, e os campos de Caiboaté, local do maior massacre que o Rio Grande do Sul já viu, são assinalados hoje por marcos e monumentos. Já Sepé Tiaraju teve seu nome inscrito em aço no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, uma lista seleta em que aparece ao lado de Tiradentes, Zumbi dos Palmares e Duque de Caxias. No imaginário popular, ele granjeou fama de santo, reputação chancelada agora pelo Vaticano, que autorizou a Diocese de Bagé a iniciar um processo de canonização. Na sexta-feira, integrantes da comissão responsável promoveriam uma série de celebrações nos locais associados ao perecimento dele e de seus 1,5 mil companheiros.
Ainda assim, o status do cacique guarani, da Sanga da Bica e de Caiboaté no panteão gaúcho nunca foi pacífico. A proposta de canonização, por exemplo, foi feita primeiro ao bispo de Santo Ângelo, que declinou de levá-la ao Papa. O palco do grande massacre é uma propriedade privada, onde uma torre de pedra foi erigida por iniciativa particular. Quando a porteira está fechada, os visitantes precisam passar por entre os fios de arame da cerca para contemplar de perto o monumento e a cruz próxima.
Quanto ao lugar da morte de Tiaraju, está situado na zona urbana de São Gabriel, a poucos quarteirões do Centro. Em 1955, quando se propôs ao governo do Estado a instalação no local de uma estátua do herói, para marcar os 200 anos de seu tombo, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS) emitiu parecer contrário, alegando ser inadmissível encarar Sepé “como uma expressão do sentimento, das tendências, dos interesses, da alma coletiva, enfim, do povo gaúcho”.
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Só nesta década uma estátua foi colocada, mas trata-se de um Sepé nanico, com um metro de altura.
– Enchem muito meu saco, me chamam até de anão por causa dessa estatuazinha – reclama o cacique Natalino Marcos dos Santos, de São Gabriel, que está à frente do Movimento Sepé Tiaraju.
Localizada em um espaço acanhado entre residências e um matagal, a imagem encontra-se deteriorada e foi alvo de vândalos. Ao lado, erguida por toras, há uma cruz missioneira de pau e uma espécie de coreto em homenagem aos Sete Povos das Missões, com telhas quebradas e repleto de pichações. Um pouco adiante, no fim de uma rua sem saída, uma outra cruz de madeira assinala o ponto onde se acredita ter ocorrido o sepultamento de Sepé. No fim de janeiro, ela estava encoberta pelo mato.
Para diferentes pesquisadores e religiosos ouvidos por GaúchaZH, ainda persiste em relação a Tiaraju, em determinados setores, a mesma má-vontade explicitada seis décadas atrás no parecer do IHGRS. Em parte, o motivo seria tratar-se de um indígena, e ainda por cima de um indígena que luta por seus direitos, em um país onde os povos nativos foram e são alvo de rapinas, extermínio e preconceito. Outra possível razão seria de caráter ideológico: o cacique guarani foi abraçado como símbolo por movimentos sociais (o MST entre eles), o que motivaria uma certa rejeição a aceitá-lo como herói ou santo.
Responsável pela paróquia de São Gabriel, o padre Emílio Groemendal Barúa afirma que a célebre frase “Esta terra tem dono”, atribuída a Tiaraju, tem sido evitada, inclusive durante a Romaria da Terra realizada em São Gabriel, em 2016, para marcar os 260 anos do massacre de Caiboaté.
O momento que a gente vive hoje é delicado, com uma polarização ideológica muito grande, até mesmo dentro da Igreja, que tem uma ala conservadora que não aceita o Sepé. Então, há um processo lento, delicado, de recolha de documentos, com a ideia de tornar Sepé um mártir da Igreja e romper com esse estigma de que ele é somente um santo das causas dos movimentos sociais.
ALESSANDRO CARVALHO BICA
Professor da Unipampa
– Isso puxa para a divisão política, ideológica. Por isso, como Igreja, a gente está dispensando essa frase. Estamos buscando uma vida de santidade a partir de Sepé, então não vamos dividir as pessoas.
Alessandro Carvalho Bica, professor de História da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e integrante da comissão de canonização, acredita que atacar a figura de Tiaraju possa ser uma forma de desautorizar os movimentos sociais, que abraçaram o cacique como símbolo:
– Sepé se voltou contra o Estado, contra Portugal e Espanha, na luta pela posse da terra que era dele. É muito emblemático. E o momento que a gente vive hoje é delicado, com uma polarização ideológica muito grande, até mesmo dentro da Igreja, que tem uma ala conservadora que não aceita o Sepé. Isso não é nenhuma inverdade. Então, há um processo lento, delicado, de recolha de documentos, de recolha de informações, com a ideia de tornar Sepé um mártir da Igreja e romper com esse estigma de que ele é somente um santo das causas dos movimentos sociais.
Sapé, Zapé. Thearaju?
Não há certezas sobra a data ou o local de nascimento de Sepé Tiaraju. Até mesmo seu nome gera dúvidas, aparecendo grafado de diferentes maneiras em documentos da época: Joze Thearaju, Sapé, Josepho, Tiararu, Zapé. O que se sabe é que ele era um cacique guarani com posições de comando na estrutura das Missões, as 30 povoações estabelecidas por padres jesuítas 150 anos antes, por ordem do rei da Espanha, com a finalidade de catequizar os indígenas.
Na época de Sepé, esses povos eram verdadeiras cidades, com atividades comerciais, artísticas, educacionais e de manufatura. Apenas nas sete missões a oriente do Rio Uruguai, no atual território gaúcho, viviam 30 mil pessoas. Como a zona não era propícia para o gado, as reduções tinham suas estâncias mais ao sul, no pampa, incluindo a área onde hoje estão os municípios de Bagé e São Gabriel. Sepé estava vinculado ao povo de São Miguel. Era alferes-mor (uma patente militar), corregedor (espécie de governante municipal) e comandante da milícia da região.
O mundo missioneiro de que ele fazia parte começou a ruir em 1750, quando Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Madri, que redesenhava a divisão do território sul-americano entre as duas coroas ibéricas. Pelo acordo, os castelhanos deveriam entregar a área dos sete povos aos lusitanos, removendo dali os indígenas, sem qualquer tipo de indenização.
Esses lugares são importantes para os índios, porque neles a gente sente a vida dos guaranis que foram massacrados. Eu mesmo tenho visões de 1756, de uns que chegam a cavalo e palmilham a trilha. É muito forte. Em Caiboaté, quando chego perto da cruz, sinto o humor de algum espírito ali, ficaram os espíritos mundanos. O coração aguentar, ah, é um esforço. Mas os lugares não estão bem cuidados.
NATALINO MARCOS DOS SANTOS
Cacique à frente do Movimento Sepé Tiaraju
Os nativos sentiram-se traídos. Recusaram-se a abandonar seu território e sublevaram-se, o que deu origem à Guerra Guaranítica (1753-1756). De um lado estavam os indígenas, principalmente guaranis. Do outro, as poderosas forças coligadas de Portugal e Espanha.
Sepé foi um dos principais líderes das tropas missioneiras. Em 1754, comandou a artilharia de São Miguel, composta de dois canhões de ferro e dois de taquaruçu, em ataque a posições portuguesas em Rio Pardo. Foi uma iniciativa malsucedida, em que ele acabou capturado. Mas conseguiu fugir de forma espetacular: enquanto era escoltado por soldados lusos, saiu em disparada com o cavalo, atravessou o rio a nado e se embrenhou no matagal, debaixo de tiros disparados pelo inimigo.
No começo de 1756, quando 4 mil soldados se aproximavam pelo sul, liderados pelos governadores de Buenos Aires (José de Andonaegui) e do Rio de Janeiro (Gomes Freire), duas das maiores autoridades coloniais na América, Sepé estava na região de São Gabriel para comandar a resistência. Experimentado, ele sabia não ser possível combater frontalmente o inimigo, muito mais poderoso. Preferia utilizar táticas de emboscada. Uma dessas escaramuças foi-lhe fatal. Depois de provocar as forças ibéricas, os indígenas saíram em disparada, para se esconder no mato. Sepé estava quase lá quando ocorreu o famoso e trágico tropeço de seu cavalo. Três dias depois, em Caiboaté, o cacique Nicolau Neenguiru cometeria o erro de enfrentar os inimigos em campo aberto, em formação de meia-lua. Portugueses e espanhóis cercaram-nos e promoveram uma carnificina. Mataram 1,5 mil e perderam só 10 homens.
– A Guerra Guaranítica, na verdade, foi um genocídio – diz o professor de História José Fernando dos Santos, chefe de serviços do Museu Nossa Senhora do Rosário do Bom Fim.
Segundo relatos da época, o corpo de Sepé foi sepultado a algumas centenas de metros da Sanga da Bica. Em Caiboaté, menos de um mês depois do massacre, um cacique fez erguer uma cruz de madeira no alto da coxilha, com inscrições em guarani: “A 7 de fevereiro morreu o corregedor Sepé Tiaraju, num combate que houve num sábado. A 10 de fevereiro, numa terça-feira, feriu-se uma grande batalha em que pereceram, neste lugar, 1.500 soldados e seus oficiais, pertencentes aos Sete Povos do Uruguai. A 4 de março mandou D. Miguel Mayrá fazer esta cruz pelos soldados”.
Todos esses lugares – a Sanga da Bica, o ponto de sepultamento de Sepé e os campos de Caiboaté – são espaços marcantes da sangrenta conquista da América do Sul pelos europeus. Para os povos indígenas, têm ainda mais significado e estão impregnados de uma memória dolorosa. No fim de janeiro, ZH acompanhou o cacique Natalino, que é caingangue mas foi criado por um casal de guaranis, em uma incursão que começou no Museu Nossa Senhora do Rosário do Bom Fim, no centro de São Gabriel. Instalado na antiga matriz da cidade, o museu praticamente não tem peças dos índios que viveram na região, mas conserva como maior tesouro um conjunto de imagens missioneiras, algumas trazidas na época da construção do templo, concluído em 1817. Esculpidos em madeira por índios das reduções jesuíticas, estão lá um São José de pau oco, uma Nossa Senhora da Saúde, um São Nicolau e um Menino Jesus de fisionomia guarani, com um cocar em mãos. A peça mais impressionante é um São Miguel Arcanjo confeccionado entre os séculos 17 e 18. Trata-se de um indígena com cocar, que pisoteia um demônio. O demônio tem a fisionomia de um bigodudo bandeirante paulista.
A parada seguinte foi a Sanga da Bica. Natalino lamentou a conservação do espaço e falou dos planos de encaminhar a demarcação como área indígena, para erigir ali um grande monumento. Um projeto para a área está sendo elaborado pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) da Unipampa de São Gabriel. A proposta é revitalizar o local, convertendo-o em um espaço de memória indígena. Uma das iniciativas do núcleo foi solicitar à prefeitura a restauração da maltratada imagem de Sepé e transferi-la para o museu – o entendimento é de que a estátua não foi feita para permanecer ao relento. Integrante do Neabi, o professor de História Carlos Alberto Xavier Garcia diz que o projeto abrange a questão ambiental.
– Atualmente, a sanga recebe águas da chuva e esgoto da cidade. Está sofrendo depredação humana. É um lugar sem iluminação, sem segurança, sem espaço para visitação. Vamos tentar viabilizar isso – disse.
Depois da Sanga da Bica, Natalino seguiu até o fundo de uma rua sem saída, local onde se crê que Tiaraju tenha sido sepultado. Ali, o cacique reclamou do mato crescido sobre a cruz que serve de marco. Bem em frente, um casal observava a cena. Fabiano Ferreira Marques, 34 anos, e Anelise Supriano de Oliveira, 35 anos, moram a poucos passos do singelo monumento, mas não sabiam que se tratava de uma homenagem a um herói da pátria.
– Dizem que aí era o cemitério. É antigo. Desde que me conheço por gente já tinha cruz aí – afirmou Anelise.
Informada de que era o possível local de sepultamento de Sepé, a moradora revelou não ter lembrança da história do personagem. Anelise tem feições tipicamente indígenas. Ao mencionar que seu sobrenome é “Supriano”, Natalino sobressaltou-se:
– É parente! É indígena! “Supriano” é lá da Reserva da Guarita. Grande parte dos indígenas é Supriano lá.
Impassível, a jovem disse não ter qualquer conhecimento sobre eventuais antepassados ameríndios.
Por fim, o cacique visitou Caiboaté. Caminhou vagarosamente e em silêncio até a cruz no topo da coxilha. Os únicos seres visíveis em todo o pampa eram dois cavalos. Ao redor da cruz, espalhava-se em círculo a ossada de um boi, alvacenta e nua. No solo sob o qual jaziam os restos de centenas de índios, havia os ossos, bosta e pequenas flores amarelas. Diante da cruz, cocar na cabeça e uma lança pataxó em mãos, Natalino começou a dançar e cantar em guarani. Ele explicou que se tratava de um ritual de louvação aos espíritos e que o cântico, traduzido ao português, significava “Guarani morreu na luta, derramou o sangue selvático”.
– Esses lugares são importantes para os índios, porque neles a gente sente a vida dos guaranis que foram massacrados. Eu mesmo tenho visões de 1756, de uns que chegam a cavalo e palmilham a trilha. É muito forte. Em Caiboaté, quando chego perto da cruz, sinto o humor de algum espírito ali, ficaram os espíritos mundanos. O coração aguentar, ah, é um esforço. Mas os lugares não estão bem cuidados – disse Natalino.
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Fonte: auchazh.clicrbs.com.br