Havia algo estranho na família de Pauline Dakin.
“Meu irmão e eu dizíamos: ‘O que você acha que está errado com a nossa família? Por que somos tão esquisitos?’ Mas esse mistério nunca era respondido.”
Os pais de Pauline, Warren e Ruth, haviam se separado quando ela tinha 5 anos, logo antes de ela começar a ir para a escola. Warren, um empresário de sucesso, bebia muito e ficava violento. Em determinado momento, Ruth não aguentou mais.
Quando Pauline tinha sete anos, ela levou as duas crianças para passar as férias na cidade canadense de Winnipeg, a mais de 1.600 km de Vancouver, onde a família morava.
Chegando lá, Ruth disse aos filhos que não voltariam mais para a antiga casa.
“Não conseguimos dizer adeus (para as pessoas em Vancouver). Foi um rompimento abrupto dos relacionamentos”, relembra.
Quando ela perguntava a sua mãe por que tinha feito isso, nunca recebia uma explicação convincente. “Ela só dizia: ‘Sinto muito, não posso te dizer. Quando você for mais velha eu conto’.”
O mesmo aconteceu quatro anos depois – dessa vez, a família se mudou para New Brunswick, na costa leste do Canadá.
Apesar disso, a vida era normal para a família de Pauline – eles recomeçavam e construíam uma nova vida em uma nova cidade. Mas, por dentro, a garota se sentia confusa, ansiosa e em depressão.
“Eu sabia que algo ruim estava acontecendo. Não sabia o que era, mas sempre senti que havia algo terrível que não estava sendo dito”, afirma.
Suspeitas
Aos 11 anos de idade, Pauline já tinha frequentado seis escolas diferentes desde que perdera o contato com o pai.
E outro homem havia entrado na vida da família, um pastor evangélico chamado Stan Sears.
A mãe de Pauline tinha conhecido Stan em um grupo de apoio para famílias de alcoólatras – ele era um dos orientadores psicológicos, e ela o procurou quando enfrentava dificuldades com o alcoolismo de Warren e se preparava para deixá-lo.
Mas nas duas vezes em que a família de Pauline se mudou de repente, Stan coincidentemente se mudou para os mesmos lugares que eles.
“O que eu sabia era que independentemente do que estivesse acontecendo, Stan também estava envolvido”, diz Pauline.
Quando chegaram a New Brunswick, eles fincaram raízes. Em 1988, quando Pauline tinha 23 anos, ela havia se formado e trabalhava no jornal da cidade de Saint John, até que sua mãe telefonou com uma proposta inesperada.
“Ela disse: ‘Agora estou pronta para explicar todas as coisas estranhas que aconteceram na sua vida’.”
‘Coloque suas joias no envelope’
As duas mulheres combinaram de se encontrar diante de um motel no meio do caminho entre as cidades em que estavam vivendo. Quando chegou lá, Ruth colocou um bilhete e um envelope vazio nas mãos de Pauline.
O bilhete dizia: “Não diga nada. Tire suas joias e as coloque no envelope. Eu vou explicar, mas não diga nada.”
“Foi muito esquisito. Eu pensei: Quem é você? O que está fazendo? Mas fiz o que ela me pediu”, diz Pauline.
Quando sua mãe a levou a um dos quartos do motel, Stan Sears estava lá à espera delas.
Stan e Ruth disseram a Pauline que, nos últimos 16 anos, estiveram fugindo da máfia, e que a família virara alvo de criminosos porque seu pai, Warren, havia se envolvido com o crime organizado.
Ela não podia usar suas joias, disse a mãe, porque precisavam descobrir se elas tinham dispositivos de escuta.
Stan disse que tudo começou depois que ele deu conselhos a um chefe da máfia que queria deixar para trás a vida no crime. Quando a organização descobriu que o homem violou o código de silêncio, eles o mataram. Em seguida, foram procurar Stan, que provavelmente sabia demais.
Quando Ruth, ex-mulher de um criminoso, começou a trabalhar como secretária na igreja de Stan, ela também virou alvo.
“Eles me disseram que cada um de nós tinha alguém nos seguindo e nos vigiando à distância. E que tentaram me sequestrar, me envenenar ou me matar muitas vezes, mas essas pessoas intervieram para me manter em segurança ao longo dos anos.”
Além dessa força-tarefa aprovada pelo governo que os protegia, Stan explicou que também havia comunidades pouco conhecidas em algumas partes do país onde os que eram perseguidos pela máfia podiam conseguir proteção. Esses locais eram conhecidos como “o mundo estranho”.
Depois de anos como fugitiva, a mãe de Pauline disse que tinha decidido voltar a sumir do mapa e buscar proteção em uma dessas comunidades.
Stan já vivia em um desses locais, mas sua mulher não quis fugir com ele. Por isso, estava vivendo sozinho e trabalhando neste “mundo estranho” com seus agentes.
Ansiedade e medo
Stan e Ruth também disseram a Pauline que esta era sua chance de finalmente estarem juntos – eles estavam apaixonados havia muitos anos, mas nunca tinham conseguido fazer nada a respeito.
Pauline ficou em choque com a quantidade de novas informações. “Eu fiquei doente de medo e de tristeza, sentia que a vida estava se despedaçando ao meu redor”, diz.
Ela passou aquele fim de semana ouvindo as histórias de Stan e de Ruth, que explicavam muitas das coisas estranhas que aconteceram durante sua infância e adolescência, como a vez em que ela chegou em casa e encontrou a mãe jogando for a toda a comida da geladeira.
Stan disse que eles tinham sido informados de que alguém estava tentando envenená-los.
Em outro momento, a família foi fazer uma trilha durante a semana e dormiu uma noite em um chalé nas montanhas. Segundo Stan, havia pessoas atrás deles, por isso tiveram que se ausentar por cerca de dois dias.
Houve também o dia em que a família foi jogar boliche em vez de ir à escola, e o dia em que as crianças chegaram de casa e foram obrigadas a tomar banho, esfregando muito os pés, e tiveram que usar um saco plástico nos pés, por cima das meias, o resto do dia.
“Mesmo que soasse absurdo, as explicações faziam com que esses eventos esquisitos se encaixassem em uma narrativa de que éramos perseguidos.”
Dublês
Quando Pauline teve que ir embora do motel, Stan perguntou se poderia colocar um localizador no carro dela, para que “os homens do bem” pudessem segui-la e protegê-la. Ele também deu a ela um pequeno rádio para que ela sinalizasse caso precisasse de ajuda.
“Ele me disse: ‘Use só se a sua vida estiver mesmo em perigo, porque as pessoas vão arriscar as vidas delas por você’.”
Pauline voltou para a vida normal – a reforma que estava fazendo com o namorado em casa e seu emprego no jornal – mas tinha dificuldades em lidar com as coisas que havia descoberto. Ela tinha cada vez mais medo.
Ela sempre olhava para trás para ver se estava sendo seguida, deixou de ir a restaurantes por medo de ter a comida envenenada e planejava rotas de fuga de casa.
Enquanto isso, a história de Ruth e Warren ficava mais elaborada. E do “mundo estranho” chegaram as informações de que muitas pessoas não eram quem Pauline e seu irmão pensavam ser.
“Eles diziam que algumas das pessoas que eram próximas de nós na minha infância, que estavam no crime organizado, foram presas, mortas ou estavam desaparecidas – e foram substituídas por dublês”, conta Pauline.
“Às vezes o dublê era posto pelos ‘bonzinhos’ e outras vezes pelos ‘maus’. Então nunca se sabia 100% quem era.”
Segundo Stan, eles passavam meses estudando gravações para entender como se comportar como as pessoas que iriam substituir, e faziam plásticas e maquiagem para se disfarçar.
Pauline encontrava esses dublês de vez em quando. No dia em que seu irmão se casou, por exemplo, ela reencontrou o pai e a tia depois de anos sem vê-los. Mas os dois, segundo disseram a ela, eram dublês.
“Minha mãe ficou muito chateada no casamento, porque a irmã dela tinha que ser uma dublê. E ela ficava dizendo: ‘Olhe os dedos do pé dela, são exatamente os mesmos de Penny. Como é que se faz os dedos de alguém ficarem assim?’.”
Confiança
Mesmo cheia de dúvidas, Pauline sempre confiou em sua mãe e Stan. “Era uma história maluca e eu tive dificuldade em acreditar. Mas se não pudesse confiar neles, em quem confiaria?”, diz.
Aterrorizada e paranoica, ela decidiu abandonar tudo para viver em uma das comunidades do “mundo estranho” com sua mãe. Stan disse a ela que haveria trabalho e que ela estaria segura.
Ela terminou com o namorado, pediu demissão do trabalho, vendeu sua casa e se mudou com Ruth e Stan para Halifax, em Nova Scotia, uma província no extremo leste do Canadá.
Ali, eles esperariam a confirmação de que era seguro entrar no “mundo estranho”. Mas o momento adequado nunca chegava.
“Nos disseram (através de Stan) que a máfia desconfiava o que estávamos planejando e estava nos ameaçando. Ficávamos sempre à espera.”
Nessa época, no entanto, Pauline conheceu Kevin, que se tornaria seu marido e a quem contou os segredos. Ele se comprometeu a ir com viver com ela na comunidade.
Em 1993, cinco anos depois de ter ouvido as explicações de sua mãe e de Stan, Pauline decidiu que deveria confirmar se as coisas que eles disseram eram verdade.
Foi quando ela decidiu inventar que sua casa havia sido roubada – e escolheu um momento em que Stan estivesse visitando sua mãe.
“Liguei para ela e disse: ‘Alguém entrou na minha casa. O que eu faço?’”. Sua mãe respondeu: “Vou perguntar a um amigo nosso e ligo de volta”.
Stan tinha dito a Ruth e a Pauline que elas não podiam nunca ir à polícia para dar queixa das ameaças e das coisas estranhas que ocorriam em suas vidas – já que a polícia, segundo ele, não era confiável.
Ruth ligou para Pauline minutos depois, dizendo que não podia falar ao telefone e que a filha deveria ir encontrá-la imediatamente.
Quando chegou lá, Pauline ouviu Ruth e Stan dizerem que duas pessoas tinham sido presas na sua rua horas antes. Essas pessoas tinham fotografias dela em mãos, a estavam seguindo e buscaram coisas específicas em sua casa.
“Quando ela disse isso, eu percebi que era tudo falso. Porque ninguém tinha entrado na minha casa, eu inventei”, afirma.
“Nesse momento, eu soube que todas as histórias, as mudanças, os dublês, era tudo mentira.”
Confronto
Quando Pauline confrontou a mãe, Ruth Dakin ficou chateada, mas não porque sua filha havia descoberto a verdade, mas porque, deixando de acreditar na história, ela ficaria exposta aos “perigos”.
Ao expor a situação para Stan, ele lhe disse que deveria ter havido algum tipo de erro no relatório sobre os homens misteriosos e que haveria uma investigação.
“Minha memória daquela noite é do quão triste ele estava. Eu não era mais como eles”, relembra.
Durante meses, Pauline e Ruth tentaram convencer uma à outra. Pauline dizia que Stan estava enganando Ruth, a mãe dizia que a filha estava cega. Elas nunca chegaram a um acordo.
Furiosa e decepcionada, Pauline decidiu retomar sua vida: entrou em contato com o pai, que estava doente e havia voltado a beber, e se afastou da mãe e de Stan.
A relação das duas nunca se recuperou por completo, mas Pauline diz que ter dado à luz duas meninas a ajudou a se recuperar do trauma. “Quando você tem filhos as coisas mudam, eles se tornam o foco do seu amor”, diz.
Ruth teve câncer em 2010, alguns anos após a morte de Stan, e viveu seus últimos nove meses com Pauline.
Ela nunca deixou de acreditar nas histórias do pastor. Nem mesmo quando, depois que ele morreu, pararam de chegar cartas do “mundo estranho” e também ameaças da máfia e mensagens cifradas de supostos colaboradores.
Mas o que mais incomodava Pauline era o fato de que Stan não parecia ser louco.
Quatro anos atrás, ainda tentando entender por que o pastor inventara tantas mentiras, ela leu um artigo médico sobre uma doença mental conhecida como transtorno delirante.
“Quando li o artigo, pensei: ‘Isso descreve Stan perfeitamente. Alguém que parece normal e é competente no trabalho, mas tem ideias malucas sobre certas coisas’.”
Ela contactou o autor do artigo, um psiquiatra de Harvard, que se entusiasmou com sua história.
Ele confirmou que Stan tinha todas as características de uma pessoa com o transtorno delirante. Outro pesquisador especialista confirmou o diagnóstico.
Encontrar um motivo por trás do discurso de Stan ajudou Pauline a se reconciliar com seu passado, mesmo que ela nunca tenha se recuperado completamente dos problemas causados pela rede de mentiras.
“Tive muita pena de minha mãe. Ela teve uma vida difícil e era vulnerável a Stan, por que ele era uma pessoa gentil e carinhosa.”
“Mas também lamentei por mim e por meu irmão. Éramos apenas duas crianças pequenas cujas vidas foram roubadas”, diz.
Pauline, que hoje é professora-assistente da Escola de Jornalismo da universidade canadense King’s College, transformou sua infância em um livro, chamado Run, Hide, Repeat: A memoir of a fugitive childhood (Corra, se esconda, repita: memórias de uma infância em fuga, em tradução livre).
FONTE : AMIGO MARCOS DO ENCART PARA O PESQUEIRAFUXICO.COM,05/03/2018.